sábado, 30 de abril de 2011

Análise do mito grego a partir de O Nascimento da Tragédia de Nietzsche

Vou postar aqui um dos trabalhos que fiz quando estudava Filosofia na Universidade Federal de São Paulo. Neste trabalho abordo o mito presente no livro O Nascimento da Tragédia de Nietzsche, uma breve história da evolução dos ditirambos à tragédia e o fim da tragédia clássica no período socrático, mito e efeito na tragédia e na vida dos gregos dos instintos apolíneos e dionosíacos.



Introdução

Neste trabalho tento analisar o mito presente no Nascimento da Tragédia, abordando como se dá o efeito apolíneo-dionisíaco na tragédia grega clássica, e posteriormente como com o racionalismo socrático presente em Eurípedes, que tenta apolinizar a tragédia desdionizando-a.
Para isso, analisei primeiramente Apolo e Dioniso dentro da mitologia grega, tentado mostrar suas histórias, seus cultos, e como cada um influenciava a vida do grego, depois analiso em o “Teatro e do Ator”, basicamente no livro da Marlene Fortuna, com o fim de entender o papel do ator no teatro, e qual a importância de se contar mitos na Grécia. Passo em seguida a análise “Dos Ditirambos a Tragédia”, traçando como a tragédia evoluiu dos ditirambos dionisíacos, e o surgimento do teatro com Tépsis, e posteriormente com os outros tragediógrafos analisando a contribuição de cada um para a evolução do teatro, e o papel do coro.
Os últimos dois capítulos são “O efeito apolíneo-dionisíaco”, mostro como que a partir de Apolo, Dioniso pode mostrar a realidade caótica ao povo grego, fazendo com que ele entre em contato com esta realidade sem cair num pessimismo, ou num niilismo, e que a partir do efeito destes dois deuses pode-se haver uma purgação no espectador trágico. E por fim em “Declínio do coro em Sófocles e racionalismo trágico de Eurípedes”, delineio já em Sófocles o início do declínio da tragédia, tendo este atribuído papel secundário ao coro e posteriormente com Eurípedes que mudou completamente a tragédia, retirando o mito, tentando eliminar Dioniso das representações com a inserção do prólogo na peça e a dialética/racionalismo socrático. Tendo a partir de Eurípedes mudado o rumo da tragédia que nunca mais voltou ao ser caráter original.
Encerro minha pesquisa com uma pequena crítica de Nietzsche ao saber racional, que não me estendi muito, pois daria para se fazer uma análise só sobre este assunto, então usei uma pequena citação só para fechar esse ponto do racionalismo grego presente primeiramente na tragédia e depois em toda vida do grego e que vigora até os tempos de hoje. Decidi por não me ater à influência schopenhauriana e wagneriana nos conceitos e em alguns pontos, me atento só no que Nietzsche usou, da maneira que usou sem referências a aqueles. Também não citei alguns pontos principais do livro, pois me ative apenas na parte do mito grego e da tragédia grega, não analisando como se daria, por exemplo, o renascimento a tragédia na Alemanha moderna através de Wagner, nem um aprofundamento na crítica ao racionalismo, a cultura, ao historicismo, dentre outros também pontos principais do livro.
Me ative nesta parte fundamental do livro, porque acredito que seja só a partir da compreensão do mito para o grego que Nietzsche pode tentar recriar na Alemanha moderna a Grécia arcaica, buscando no medievo alemão as formas míticas que se possibilitaria tal recriação. Só a partir da compreensão do mito que foi possível todo o desenvolvimento teórico do livro e todas as teses expostas a seguir.



Apolo – a moderação do homem

Apolo, deus grego da beleza, da luz, da lei, da harmonia. Irmão gêmeo de Ártemis, deusa da caça, ambos filho de Zeus e Leto, deusa da noite. Apolo e Ártemis, assim como Dioniso – que analisaremos em breve – são filhos de Zeus com outras deusas ou mortais, e em ambos os casos foram partos complicados, pois em ambos Hera, esposa de Zeus, se opôs a eles e fez o que pôde para impedi-los.
Leto, percebendo que a hora do parto aproximava-se procurou alguma terra onde pudesse ter seus filhos, porém Hera sabendo da traição de Zeus, proibiu que todas as terras negassem apoio a ela, e quem contrariasse tal ordem sofreria sua ira. Leto parou numa ilha, pois não pertencia a terra nenhuma, era ‘livre’ no mar, ilha que mais tarde Apolo chamaria de Delfos e a colocaria no centro1 do mundo, e lá ficou durante nove dias e nove noite agarrada numa palmeira esperando os filhos nascerem, porém Hera retinha com ela Ilítia, a deusa do parto, e sob ordem de Hera o parto não fora possível.
Conta a lenda que se Ilítia estivesse com a perna esquerda cruzada sobre a direita, o parto não se realizava. E assim Hera a mantinha no Olimpo. Foi através da mensageira Íris que Atena e as outras deusas com compaixão de Leto enviaram a Hera um presente pedindo que o parto se realizasse. O presente foi um colar de fios de ouro enlaçados e de âmbar2 com mais de três metros de comprimento. Hera permitiu o parto e Leto deu a luz à Ártemis e com a ajuda desta a Apolo. Cisnes sagrados sobrevoaram a ilha no momento que Apolo nasceu. Zeus enviou presentes a Apolo: uma mitra de ouro, uma lira e um carro puxado por cisnes; e ordenou que todos fossem a Delfos para prestigiar o nascimento de seu filho.
Porém os cisnes sagrados levaram Apolo ao país dos Hiperbóreos3, onde permaneceu por um ano, e depois retornou à Grécia, especificamente a ilha de Delfos, onde foi recebido com festas e cantos “Até a natureza se endomingou para recebê-lo: rouxinóis e cigarras cantaram em sua honra; as nascentes tornaram-se mais frescas e cristalinas”4. Todo ano são sacrificadas em sua homenagem hecatombes.
A maior aventura de Apolo – e algumas com Ártemis, protegendo, assim, sua mãe - foi matar o dragão Píton. Ao matar Píton, Apolo passou um ano em Tempe, purificando-se, tornando-se assim,

“o deus Kathársios, o “purificador”, por excelência. É que toda “mancha” produzida por um crime de morte era como que uma “nódoa maléfica, quase física”, que contaminava o génos inteiro. Matando e purificando-se, substituindo a morte do homicida pelo exílio ou por julgamentos e longos ritos catárticos, como foi sucedido com Orestes, assassino de sua própria mãe, Apolo contribuiu para humanizar os hábitos antigos concernentes aos homicídios”5.

Em comemoração ao triunfo de Apolo sobre Píton e para “perpetuar a memória da vitória e manter o dragão in bono animo”6, era realizado de quatro em quatro anos os Jogos Píticos, “que deviam seu esplendor sobretudo às disputas musicais e poéticas (...) as Musas imperavam em Delfos”7. Foi também após vencer Píton que Apolo se tornou o senhor do Oráculo de Delfos, e a “pele do dragão cobria a trípode sobre que se sentava a sacerdotisa de Apolo, denominada, por essa razão, Pítia ou Pitonisa”8.
Apolo era o filho de Zeus que se pôs no direito exclusivo de dizer os dizeres de seu pai, revelava e interpretava o pensamento deste através da Pitonisa. O êxtase a que esta entrava para poder revelar aos homens os segredos de Zeus, e Apolo, era uma ‘técnica’ dionisíaca – o êxtase e o entusiasmo -, porém, com efeito, apolíneo. A sacerdotisa de Apolo em estado de êxtase, porém possuída por Apolo respondia a pergunta depois de um pequeno ritual e de um pagamento de taxas, que eram diferentes para os cidadãos, sacrificavam um bode ou uma cabra e se banhavam na fonte da Castália. As consultas eram feitas uma vez por ano, no aniversário de Apolo, porém a procura foi ficando cada vez maior, passando a terem três sacerdotisas e as consultas a serem realizadas todo dia sete do mês, dia do nascimento de Apolo.

“Apolo é considerado o deus Solar, um deus da luz, do arco e da flecha. Realizados do equilíbrio e da harmonia dos desejos, não visava suprimir as pulsões humanas, mas desbarbarizar velhos hábitos, mercê de uma espiritualização progressiva e do desenvolvimento da consciência, as máximas do grandioso templo Délfico pregam a sabedoria, o meio-termo, o equilíbrio, a moderação: “Conhece-te a ti mesmo” e “nada em demasia” são um atestado bem nítido da influência ética e moderada do deus Sol”9.

“O deus que assim conduz ao conhecimento é também o instituidor das regras que dão forma normal ao convívio humano. É com apoio em sua autoridade que os estados fundam suas instituições legais”10.
As artes dramáticas gregas – tragédia e comédia – aumentavam a espiritualidade das pessoas purificando-as de paixões desenfreadas, e do mesmo modo a ginástica, os exercícios físicos, disciplinavam o corpo em todos os seus aspectos, assim as capacidades emocionais, psíquicas e físicas do ser humano aumentavam. O homem grego contemplando as belas formas na vida e as obras-de-arte elevavam sua alma com o fim último de purificar o homem através da catarse.


Dioniso – mito, rito, teatro e mania

Deus do êxtase e do entusiasmo, do vinho e da orgia, deusa da vegetação. O “primeiro Dioniso”, chamado Zagreu é filho de Zeus e Perséfone. Zeus para proteger o filho após seu nascimento entregou-o a Apolo e Curete - pois Hera furiosa queria vingar-se da traição de Zeus – que o enviaram a Parnaso. Hera tendo descoberto onde o filho de Zeus se escondia enviou Titãs disfarçados – com o rosto polvilhado em gesso11 -, atraíram Zagreu e o fizeram em pedaços, tendo cozido e comido-o e seguida12.
Zeus fecundou Sêmele - com o que recuperará de Zagreu – que ficou grávida do segundo Dioniso. Hera após descobrir outra traição de Zeus, metamorfoseada iludiu Sêmele para que esta pedisse a Zeus que se lhe mostrasse em todo seu esplendor. Zeus a advertiu que como mortal não poderia ver um Deus como ele é, mas ela insistiu e como ele havia prometido não lhe contrariar os pedidos, se mostrou e ela foi fulminada. Zeus para salvar o filho, recolheu-o do ventre da mãe e o pôs em sua coxa onde ele completou sua gestação.
Após Dioniso nascer, Zeus o levou a corte de Átamas, na Queronéia e o deixou aos cuidados do irmão de Sêmele, Ino, Hera ao descobrir onde Dioniso estava, enlouqueceu Ino e sua esposa, Átamas, eles ‘enfeitiçados’, mataram os dois filhos, e quando se deram conta do ocorrido, Ino se matou e Atamas, esposa de Ino, foi expulsa da Queronéia. Zeus temendo nova fúria e vingança de Hera, transformou Dioniso num bode e o enviou aos Monte Nisa onde ficara sob os cuidados das Ninfas e dos Sátiros. Tendo permanecido no campo, “Dioniso é um deus essencialmente agrário, deus da vegetação”13.
Até o enfraquecimento militar e político dos Eupatridas Em Atenas no séc. VI a.C., a polis era dominada por eles que controlavam tudo, inclusive a religião, tendo adotado como seus deuses os olímpicos (Zeus, Atenas, Hera, Ares, Afrodite, Apolo). “Balançados pela criação do sistema monetário, pelo vertiginoso desenvolvimento do comércio, pelo descontentamento popular”14, Sólon criou uma constituição para a polis e iniciou-se a democracia em Atenas. Com este novo regime o povo tinha direitos, e com ele e a democracia Dioniso “fez sua entrada triunfal na polis de Atenas”15.
As 4 festas mais importantes em homenagem a Dioniso era: Dionísias Rurais, Semeias, Dionisías Urbanas ou Grandes Dionisías e Antitésrias. Em suas festas “procissões com cantos e danças, onde todos se disfarçavam com máscaras ou disfarçavam-se de animais, o que mostra tratar-se de um sortilégio para provocar a fertilidade dos campos e lares”16.

“Dioniso, é o deus da metamórphosis, o deus da transformação (...) a transformação do homo dionysiacus pelo êxtase e pelo entusiasmo levava a romper com todos os interditos de ordem política, social e olímpicos, que lhe serviam de respaldo (...) Os devotos de Dioniso, após a dança vertiginosa caiam semidesfalecidos. Nesse estado acreditavam sair de si pelo processo do êxtase. O sair de si implicava um mergulho de Dioniso em seu adorador através do entusiasmo. O homem, simples e mortal, em êxtase e entusiasmo, comungando com a imortalidade, tornava-se herói, um varão que ultrapassou a medida de cada um”17. “A liberação provocada pela embriaguez a que se apossa dos que bebem, a que se apodera das multidões arrastadas pelo fascínio da música que lhe desprezam o culto. Desse modo, Dioniso retrataria as forças de dissolução da personalidade: a regressão às forças caóticas e primordiais da vida, provocadas pela orgia e a sustentação da consciência no magma do inconsciente”18.

Deus emocional que representa a ruptura das inibições, dos recalques, das repressões, da lei, deus da permissão, do desregramento, da exuberância, deus da democracia e do povo. Em suas procissões o homem após beber vezes e vezes cai numa dança vertiginosa incitado por sons caóticos e enlouquecedores. O homem embriagado, levado em êxtase e entusiasmo, em delírio e alucinação, põem-se em contato íntimo com os deuses, pois Dioniso, deus democrático que rompe todas as barreiras, classes sociais e política, quer tornar o homem divino e o divino humano. Deus da fertilidade humana e dos animais. Deus que está sempre em movimento, chega e logo parte de cidade em cidade, de festa em festa, era conhecido também por vadio, viandante, vagante, bêbado errante.
Em seus cortejos não faltava “o banquete, a dança, o canto, a orgia”19, orgia que surge após tomarem excessivo vinho, e serem levados ao êxtase pela música transcendental dionisíaca cometem a hybris “uma perversidade desenfreada, uma rebeldia insolente, um excesso, um ultrapassar das medidas humanas e deíficas, que dissolve a personalidade de cada um e faz o um se tornar todos, regridem, pois, às formas caóticas e primordiais da vida, que provoca a orgia”20. Pelo fato de que em êxtase o homem levado pela loucura do deus faz coisas que não faria em estado sóbrio, sendo por isso conhecido como deus da transformação e da metamorfose.
Também é o deus do vinho, pois deu de presente aos homens a dádiva do cultivo da uva, transformando-a em vinho. Dioniso “transformado em bode o faz deus soberano da vinha, porque o bode pisa as uvas para liquefaze-las, a uva esmagada e descansada por longo tempo fermentava (...), transformando-se numa bebida capaz de enlouquecer e libertar o espírito de qualquer cuidado”21. “Vinho criado para acalmar a angústia dos pobres humanos, está bebida traz a dádiva do sono, esquecimento dos males cotidianos (Detienne)”22.
O significado do culto dionisíaco é que o homem desde o seu nascimento está fadado à dor, ao devir e a morte, ele sabe que sua vida é breve e nunca se igualará aos deuses, e em tudo o que ele faz é tentar divizinar-se, imortalizar-se. Com os gritos e os risos, tanto de dor, loucura, ilusão, alegria, revolta, indignação, horror e prazer, e com as máscaras que servem para transformar o homem metamorfoseando-o em qualquer animal ou naquilo que ele deseja, intimamente, ser. Máscara que liberta, que esconde, que transmuta, que rompe com todos os vínculos estabelecidos.
Vínculos rompidos como as separações dos homens em classes sociais, regimes políticos, leis, a liberdade do culto dionisíaco tem o intuito de ridicularizar a vida dos deuses e do ser humano. Liberdade que se vincula “à idéia de renovação universal, ou da errância sexual como necessidade de transformação e revelação, depuração e renascimento”23. “Tudo o que era proibido em tempos ou condições normais, era permitido no espaço da carnavalização”24. Essa liberdade servia para, momentaneamente, fazer o homem sentir-se integrado com os deuses, sendo todos iguais.
A metamorfose do excesso de seu culto, tanto no comer como no beber, como nos mostra Marlene Fortuna em seu “Dioniso e a comunicação na Hélade” “significava o esbanjamento, o excesso, o desrespeito às divisões comuns, associada à idéia de banquete (...), significava o triunfo da devastação e do esgotamento”25.
Foi assim que em as Bacantes, Agave, tomada pelo deus Dioniso, mata seu filho Penteu, quando este tenta espiar as bacantes, não sendo permitido para não bacantes, Dioniso resolve vingar-se, e faz com que Agave, sua mãe, acreditando ser um leão, mata o filho e sai com sua cabeça nas mãos exibindo-se por Tebas, ignorando o que realmente tinha feito. Nesse sentido

“Tudo quanto o aquele que responde em êxtase e entusiasmo fazer, daqui para diante e terá que faze-lo, realizá-lo-á contra si mesmo. Mais um passo e fechar-se-ão sobre eles as garras do destino cego, a Moira (...). Foi assim que a tragédia de Dioniso, esse deus da experiência religiosa punha em risco todo um estilo de vida e um universo de valores, exatamente porque entranhado no homem pelo êxtase e entusiasmo, abolia a distância entre o mortal e os imortais, pôde ser aceito na polis do deus olímpico”26.


O teatro e o ator

Marlene Fortuna no livro citado diz que talvez pelos homens não acharem as respostas às suas perguntas mais íntimas, e o significado de tudo o que o cerca o homem pode ter nascido dramático, há uma necessidade desse jogo teatral, pois ele responde miticamente as incertezas da vida e que o torna mais feliz em sua infelicidade. O teatro serve para descarregar um potencial inerente ao ser humano.
O ator como Dioniso é um vagante, um andante, que muda de lugar para lugar, de teatro em teatro, de festa em festa, de personagem em personagem. O trabalho do ator para ser bem executado deve ter por base Apolo, pois está é aquele que dá as bases para uma boa sustentação racional, estruturação, um bom ator deve “ter ciência”. O ator deve, portanto, se afastar do vinho, e conseqüentemente no êxtase e do entusiasmo, para assim não perder a consciência que mortificaria a interpretação dramática “conduzindo-o a perder a mediação apolínea-dionisíaca”27.
O ator é aquele que ocupa o centro sagrado de Dioniso, ou seja, o palco, e nele dança e “isto o colocava em êxtase, fazendo acordar o divino dentro do coração, ou o enthusiásmos”28. Rosa Maria Dias num ensaio29 cita Schelling para demonstrar essa antítese entre os dois deuses, entre os dois instintos: “estar embriagado e sóbrio, não em tempos diferentes, mas simultaneamente, este é o segredo da verdadeira poesia. É isso que distinguia a inspiração apolínea da dionisíaca”30, sendo o primeiro sóbrio, harmonioso entre seus impulsos e desejos, moderado e o segundo sempre em busca de satisfação, imoderado, bêbado, um destruidor, um instinto desenfreado.

O re-contar os mitos era importante para os povos antigos, principalmente os gregos, porque através dele se acreditava estar tornando presente um mito antigo, Fortuna explicita muito bem sobre este ponto:

“Para a ideologia mítica contar histórias é recriar, re-inaugurar e não apenas rememorar. Contar é uma forma de presentificar um momento inaugural. E aí está o significado mágico do ritual. Nesse sentido, o teatro, “porque conta”, é inaugurador do mito, é também um co-criador do rito, por isso mágico, por isso ritualístico. A diferença é que o ator do rito nas narrativas míticas tribais não é um personagem, é o próprio deus, que é ele mesmo”31.


Dos ditirambos à tragédia

Para se chegar na tragédia, antes é preciso passar pelo drama satírico e pelos ditirambos, onde tudo começou. A origem primordial do teatro se deve à dança principal de um de seus ancestrais, o ditirambo, nas Dionísias Urbanas. Foi nas Dionísias Urbanas que nasceu o ditirambo, que eram canções em louvor ao deus em forma de coro e seus componentes vestiam-se de Sátiros. Ao se aprimorar os ditirambos dando a este um coro regular e uma peça surge o drama satírico.
Com o passar dos anos, o drama satírico que reproduzia Dioniso em algum aspecto passou a representar os heróis, perdendo seu antigo caráter dionisíaco. Afastando-se de Dioniso e adotando como temática os heróis, a tragédia perdeu seu caráter dionisíaco em muitas partes e depois de desdionizada e apolinizada ao máximo a tragédia se tornou uma espécie de liturgia apolínea. Sobre este ponto, será melhor explicitado daqui pro fim do trabalho.
O teatro surgiu com Tépsis, primeiro ator do mundo, quando ele chegou em Atenas por volta de 570 a.C., com outros atores – sendo ele o principal -, o coro, as máscaras e vários personagens e roteiros que ele escrevera. “Tépsis, liderando o coro dos festivais dionisíacos e representando o próprio deus, dando-lhe voz e carne. Tudo isso o ator, esse ser peregrinante sempre em busca da cor estética de mil e uma personalidades”32. Tépsis defendeu o ator como sendo um migrante, alguém sempre em movimento, tal como Dioniso. Após Tépsis vieram Ésquilo (525 – 436 a.C.), Prátinas (512 – 448 a.C.), Frínico (501 – 432 a.C.), Sófocles (495 – 405 a.C.), Quérilo (483 – 393 a.C.), e Eurípedes (443 - 382 a.C.).

“Cada um deles contribui de maneira diferente com o teatro grego. Frínico dividiu o coro em dois grupos e com isso provocou uma divisão de opinião entre os espectadores, além disso, foi o responsável pela introdução de personagens femininos em suas peças; Tépsis inventou a máscara para os atores e introduziu o protagonistés (primeiro ator); Prátinas reprovava as interferências musicais em detrimento da palavra do dramaturgo e conseqüentemente do ator; Ésquilo, antes de ser tragediógrafo, foi ator, mas como escritor sua grande contribuição foi a introdução do deuterogonistés, ou o segundo ator, a quem cabia a criação do conflito; Sófocles inovou o teatro com a criação do tritagonistés, que, diferente do que poderíamos chamar de terceiro ator como nos demais casos, significava vários personagens de uma tragédia interpretados por três atores no máximo; outra inovação de Sófocles foi a introdução da música como atividade própria, separada e autônoma, e a maior estruturação do coro, a ponto deste ganhar um diretor próprio”33.

O coro da tragédia é onde os expectadores, que Nietzsche chama de espectador ideal, sente-se representado e deixa que as cenas atuem sobre ele, para esse espectador o ator não é só um ator encenando, mas o próprio herói encarnado em carne e osso, ele “é obrigado a reconhecer na figura do palco existências vivas”34. O fato de a cena atuar sobre ele é o que garante o consolo metafísico que quer dizer a ele “que a vida, no fundo das coisas, apesar de toda a mudança das aparências, é indestrutivelmente poderosa e cheia de alegria”35.Sem esse consolo “não há como explicar de modo algum o prazer pela tragédia”36.
O que possibilita que a tragédia se lhe apresente em sua completude que possa resultar num consolo metafísico é a música dionisíaca, Nietzsche diz que

“a música estimula à introvisão similiforme da universalidade dionisíaca e deixa então que a imagem similiforme emerja com suprema significatividade. Desses fatos, em si compreensíveis e de modo algum inacessíveis a qualquer observação mais profunda, deduzo eu a capacidade da música para dar nascimento ao mito, isto é, o exemplo significativo, e precisamente o mito trágico: o mito que fala em símiles acerca do conhecimento dionisíaco”37.

Roberto Machado sobre este assunto comenta

“Pensar a música como arte essencialmente dionisíaca significa dizer que ela é o meio mais importante de que o homem dispõe para se desprender de si próprio, para se desfazer da individualidade, e entrar em comunhão com o uno originário, expressando, com a intensificação máxima de todas as suas capacidades simbólicas, a dor e o prazer da vontade”38.

Portanto, o mito fala através da tragédia sobre o “conhecimento dionisíaco” que através da música conseguimos nos desprender de nossa individualidade unindo-nos com a natureza, com o uno originário. Portanto, essa música dionisíaca é, essencialmente, não-apolínea, pois nos integra com o todo, rompendo os laços e possibilitando que Dioniso se expresse em mais alto grau.
Só para encerrar este capítulo, antes de entrar propriamente na reconciliação entre Apolo e Dioniso na tragédia, citarei um trecho onde Nietzsche distingue os coros apolíneos dos dionisíacos:

“As virgens que, com ramos de loureira na mão, se dirigem solenemente ao templo de Apolo e, no ensejo, entoam cânticos processionários, continuam sendo o que são e conservam os seus nome civis: o coro ditirâmbico é um coro de transformados, para quem o passado civil, a posição social estão inteiramente esquecidos; tornaram-se os servidores intemporais de seu deus, vivendo fora do tempo e fora de todas as esferas sociais. Toda e quaisquer outra lírica coral dos helenos é apenas uma extraordinária intensificação do solista apolíneo, ao passo que no ditirambo se ergue diante de nós uma comunicação de atores inconscientes que se encaram reciprocamente como transmudados (...). Nesse encantamento dionisíaco se vê a si mesmo como sátiro e como sátiro por sua vez contempla o deus; isto, em sua metamorfose ele vê fora de si uma nova visão, que é a ultimação apolínea de sua condição”39.


O efeito apolíneo-dionisíaco

Miguel Angel de Barranechea, analisando em Nietzsche a dicotomia civilização/barbárie em um ensaio40 delineia o percurso de Dioniso na Grécia, sua chegada, seu encobrimento por Apolo com seu véu de Maya, o ressurgimento de Dioniso e sua re-integração, que a partir desse momento Apolo e Dioniso coexistiriam na Grécia.
Achamos mais fácil recorrer a Freud e Nietzsche, num estudo de Cíntia Vieira da Silva41 pra descrever o processo de civilização, para partindo daí retomar o estudo de Barranechea, tomando, com isso, o ponto de vista de que, num primeiro momento da civilização – um momento dionisíaco – não havia regras nem leis, tudo era permitido, daí os irmãos que cometeram o parricídio instituem as regras, criam a ordem, a lei – encobrem Dioniso com Apolo. Em Freud, após o parricídio na horda primitiva pelos filhos, eles instituem regras para que um não queria tomar o lugar antes do pai e impor sobre os outros sua vontade. Então a comunidade e a lei surgem para “proteger os homens contra a natureza (Freud 6, pg 47)”42.
No início da civilização dominava o mais forte, a história se construía com força e guerra, era brutal e violenta. Era um Dioniso violento e destrutivo que dominava nos homens. Assim, o que Nietzsche chama de moral de escravo onde os valores são substituídos e é instituída a lei, para que um não queria sobrepujar o outro, Apolo é instituído na história, Dioniso encoberto.
Neste momento pré-artístico, estes dois impulsos vitais já existiam, sendo que as artes oram criados posteriormente as leis cada um com um intuito: Dioniso queria reintegrar o povo com a natureza; e Apolo criar a bela aparência para esconder a realidade do homem. “O apolíneo desativa essas pulsões medonhas – o impulso bárbaro, caótico e titânico de Dioniso -, levando ao autoconhecimento, à individuação, à aceitação de regras coletivas. O homem, devido a essa procedência dicotômica, tende tanto para o brutal como para o harmonioso”43.
Após este primeiro contato, desesperador, com a realidade pura e crua, os gregos tornaram-se apolíneos, encobriram a realidade com o véu de Maya de Apolo, o grego não suportou saber que “a vida humana é transitória, momentânea, que o homem nada é, que teria sido preferível não ter nascido”44.
Assim surge as belas-artes na Grécia, como uma vida de redenção45, uma tentativa de tornar a vida mais doce, mais aceitável, menos terrível, construíram estátuas e templos para “ocultarem o negro abismo, surge o Olimpo, terra de sonhos e beleza46, que permitirá esquecer o terror e o vácuo da existência humana”47. Esse foi o auge de Apolo. “A cidade grega mantém dentro de suas muralhas a arte, a lei, o equilíbrio, o impulso civilizatório”48.
Dioniso, porém, vive agora, depois de ‘exilado’ da Grécia, em Roma e na Ásia, e aos poucos e por todos os lados ele cerca e vai entrando na Grécia, Apolo e sua arte dórica tinham expulsado aquele estrangeiro, aquele deus oriental, que rompe com todas as barreiras, porém,

“É na arte dórica que se imortalizou essa majestosa e rejeitadora atitude de Apolo. Mais perigosa e até impossível tornou-se a resistência, quando, por fim, das raízes mais profundas do helenismo começaram a irromper impulsos parecidos: agora a ação do deus délfico restringiu-se a tirar das mãos de seu poderoso oponente as armas destruidoras, mediante uma reconciliação concluída no devido tempo. Essa reconciliação é o momento mais importante49 na historia do culto grego”50.

Agora Apolo e Dioniso vivem juntos. Estes dois deuses, estes dois impulsos, a dicotomia bárbaro/civilizado coexistem, vivem juntas, se misturam no povo e nas artes, principalmente na tragédia, onde “são apolinizadas as tendências dionisíacas, há um jogo apolíneo com a embriaguez e a desmesura51. Elas perdem o seu potencial destruidor ao serem filtradas pela lanterna mágica da arte”52. A arte transforma a realidade caótica e horrível em representações com as quais se é possível conviver, Apolo transfigurador do principium individuationis53, redime com a arte através da aparência, numa aparência aceitável, isso se dá, como mostra Nietzsche, da seguinte maneira:

“Ao passo que, sob o grito de júbilo místico de Dionísio, é rompido o feitiço da individualidade e fica franqueado o caminho para as Mãe do Ser – “cujos nomes são: Ilusão, Dor, Vontade”54 – para o cerne mais íntimo das coisas”55.“No efeito conjunto da tragédia, o dionisíaco recupera a preponderância; ela se encerra com um tom que jamais poderia soar a partir do reino da arte apolínea. E com isso o engano apolíneo se mostra como o que ele é, como o véu que, enquanto dura a tragédia, envolve o autêntico efeito dionisíaco, o qual, todavia, é tão poderoso que, ao final, impele o próprio drama apolíneo a uma esfera onde ele começa a falar com sabedoria dionisíaca e onde nega a si mesmo e à sua visibilidade apolínea. Assim, a difícil relação entre o apolíneo e o dionisíaco na tragédia poderia realmente ser simbolizada através de uma aliança fraterna entre as duas divindades: Dionísio fala a linguagem de Apolo, mas Apolo, ao fim, fala a linguagem de Dionísio: com o que fica alcançada a meta suprema da tragédia e da arte em geral”56.


Nietzsche afirma que em todas as peças até Eurípedes, todos os heróis trágicos: Prometeu, Édipo e etc, são apenas representações de Dionísio.


Declínio do coro em Sófocles e racionalismo trágico de Eurípedes

Antes do fim da tragédia instintiva ele nos aponta que já em Sófocles iniciou-se o declínio da tragédia quando este vê o coro como secundário e não lhe atribui seu papel originário, principal, declinando-o, e conseqüentemente a tragédia. Nietzsche diz:

“O coro só pode ser entendido como casa primeira da tragédia e do trágico em geral. Já em Sófocles aparece tal embaraço ao coro – um importante sinal de que já com ele começa a esmigalhar-se o corpo dionisíaco da tragédia. Ele já não se atreve a confiar ao coro a porção principal do efeito, porém restringe de tal modo o seu domínio que o coro parece agora quase coordenado com os atores, como se tivesse sido alçado da orquestra para o interior da cena; com o que, sem dúvida, a sua essência fica inteiramente destruída, embora também Aristóteles possa dar a sua aprovação precisamente a essa concepção do coro. Aquele deslocamento da posição do coro que Sófocles recomendou através de sua prática e, segundo a tradição, até mesmo por escrito, é o primeiro passo para o aniquilamento do coro, processo cujas fases se sucederam com assustadora rapidez em Eurípedes, em Agatão e na Comédia Nova”57.

O Século V – VI a.C. foi de grandes mudanças para a história da Grécia, e com ela da tragédia, foi com o surgimento da filosofia racional de Sócrates, Platão e Aristóteles que as artes mudaram seu rumo, sob influência de Sócrates Eurípedes introduziu o prólogo na tragédia, mudando sua estrutura, que passou a ter a seguinte estruturação:

“Diálogo e coro alternavam-se na tragédia grega, pois, da seguinte maneira: iniciava-se a representação com o Prólogo, uma introdução encarregada de dar as explicações necessárias para o entendimento da peça dramática, apresentando ao público a lenda cujos elementos precisavam ser conhecidos ou relembrados. A seguir, no Párodo, o Coro entrava cantando (para-odós: ao longo do caminho, enquanto caminha). Daí por diante, alternavam-se Coro e Diálogo em Estásimos (atuações do Coro) e Episódios, que o teatro moderno chamaria de “Atos”. O último Episódio levava um nome especial de Êxodo e, não raro, terminava com um canto coral, denominado Kommos, em que se uniam cantores e atores. Não havia possibilidade de mudança de cenários, uma vez que os atores deviam permanecer em cena durante toda a peça dramática. A ação devia, pois, ser contínua e desenvolvida no mesmo local, do princípio ao fim. Essa limitações constituíam as bem conhecidas unidades de tempo e lugar, subordinadas a uma terceira unidade principal de ação: a ação dramática devia conter o princípio, o desenvolvimento e o fim de um único acontecimento. (Lime, 1996: 105)”58.

Seguindo este raciocínio, tento mostrar quais os passos seguintes mudaram a tragédia, tentando com Sócrates através de Eurípedes expulsar dionisíaco e fazer uma tragédia apolínea e seguir os passos de Eurípedes até por fim declinar toda a arte grega com o racionalismo socrático-platônico.
Com Eurípedes a tragédia sofreu sérias mudanças e com a inserção do prólogo antes do início da peça e o racionalismo e a dialética influenciado por Sócrates, Eurípedes tenta des-dionisar a tragédia, tornando-a uma tragédia apolínea. Inspirado nas máximas socráticas: “Tudo deve ser consciente para ser bom; virtude é saber; só se peca por ignorância; O virtuoso é o mais feliz”59, o princípio estético euripidiano passa a ser “tudo deve ser consciente para ser belo”60.

“Eurípedes acreditava ter notado que, durante aqueças primeiras cenas – da tragédia sofocliana-esquiliana -, e o espectador tomado de peculiar inquietação, ao querer resolver o problema de calcular a estória antecedente, de modo que a beleza poética e o pathos da exposição antes da exposição e na boca de um personagem a quem se devia conceder confiança”61.

Nietzsche comenta a respeito do prólogo que ele desmascarando a tragédia, ela perde seu poder do consolo metafísico, e que com este também se perde aquela tensão de viver e de vivenciar, de se imaginar aquilo que se passará na cena como real, não é mais vivenciado, os atores não são mais “heróis re-encarnados”, mas simplesmente atores que anunciam algo e contam em seguida, ele comenta:

“O que nós, em comparação à tragédia sofocliana, costumávamos levar antes tantas vezes à conta de Eurípedes como defeito, é principalmente produto desse penetrante processo crítico, dessa atrevida intelecção. O prólogo euripidiano nos serve de exemplo da produtividade desse método racionalista. Nada pode haver de mais contrário à nossa técnica cênica do que o prólogo no drama de Eurípedes. Que uma personagem individual se apresente no início da peça contanto quem ela é, o que procedeu à ação, o que aconteceu até então, sim, o que no decurso da peça há de acontecer – isso um autor teatral moderno tacharia de renúncia propositada e imperdoável ao efeito da tensão. De fato, sabe-se tudo o que vai ocorrer. Quem vai querer esperar que ocorra realmente? – mesmo porque, no caso, não se verifica absolutamente a excitante relação de um sonho vaticinador com uma realidade que se apresentará mais tarde. Completamente diverso era o modo de Eurípedes refletir. O efeito da tragédia jamais repousava sobre a tensão épica, sobre a estimulante incerteza acerca do que agora e depois iria suceder, mas antes sobre aquelas grandes cenas retórico-líricas em que a paixão e a dialética do protagonista se acaudalavam em lardo e poderoso rio. Tudo predispunha ao pathos era considerado reprovável”62.

Com o prólogo e a influência socrática, Dionísio estava sendo expulso de vez da tragédia, que nunca mais retornou ao seu lugar original. Sócrates o inimigo de Dionísio deu cabo de sua influência para padronizar a arte, para torna-la bela, racional, harmônica. Fazendo dela, um lugar não mais do mito, mas da razão, da argumentação “agora tem de haver entre virtude e saber, crença e moral, uma ligação obrigatoriamente visível”63. Agora a serenojovialidade do homem grego é a

“Serenojovialidade do homem teórico (...) que ela trata de dissolver o mito, que ela substitui um consolo metafísico por uma consonância terrena, sim, por um deus ex machina próprio, a saber, o deus das máquinas e crisóis, vale dizer, as forças dos espíritos naturais conhecidas e empregadas que acredita numa correção do mundo pelo saber, em uma vida guiada pela ciência”64.

Um dos temas abordados no livro é, também a crítica ao modelo de pesquisa de sua época, ao historicismo, de como tratavam do conhecimento do passado com conceitos e encerrados em si, assim, ele combate esse modelo de vida guiado pela ciência, pelo saber, que vem desde Sócrates. Não nos deteremos nesse ponto, mas para fechar este ponto citaremos um trecho da crítica às ciências exposto no Nascimento da tragédia:

“Não haveria ciência se ela tivesse a ver apenas com essa única deusa nua e nenhuma outra. Pois então os seus discípulos deveriam sentir-se como aqueles que quisessem escavar um buraco precisamente através do globo terrestre, uma vez que cada um deles percebe que, ele, mesmo como máximo esforço durante a vida toda, só seria capaz de escavar um pequeníssimo pedaço daquela profundidade imensa, parte que é, ante seus próprios olhos, recoberta pelo trabalho do seguinte, de modo que uma terceira pessoa parece proceder bem se escolher um novo local para sua tentativa de perfuração”65.



Conclusão

Tentei com esta pesquisa mostrar que é a partir do entendimento de que a tragédia, e a vida do povo grego se constituem a partir de dois impulsos vitais contrários, o apolíneo e o dionisíaco, que sendo contrários, cada um tem uma hora de glória sendo que logo em seguida seu contrário, volta a tona, e que por fim, os dois se reconciliam e então a cultura grega chega a seu ponto mais importante, pois é daí que surge a tragédia clássica grega.
O que eu acredito ter sido a chave fundamental do livro foi que, pela primeira vez, como apontou em aula o professor Henry Burnett66, se via uma Grécia não apolínea, perfeita, o que constitui o erro principal dos antepassados de Nietzsche. Para este, a Grécia não deve ser estudada do ponto de vista de ser um povo pleno, perfeito, acabado em si próprio, pois se fosse não teriam necessidade da tragédia, nem se colocariam no palco as impossibilidades do homem.
Tendo, pois, Nietzsche, dado este passo a frente e essencial ele pôde interpretar a Grécia com um novo ponto de vista, um ponto de vista da duplicidade de instintos contrários que surgem no seio deste povo, além da visão não moralizante da tragédia, de se interpretá-la sem a visão de culpa do herói trágico, a partir dele, interpreta-se as tragédias como sendo o destino algo que não se resolve, como pretendia a tradição moral cristão, a partir de uma espiritualização e de uma ascese, mas que o destino deve ser vivido, sofrido e nada pode interferir nisso.
Logo após o grande período da Grécia, onde Apolo e Dioniso viviam juntos, de mãos dados, vivendo num jogo artístico e as artes bebendo de suas fontes, veio o grande vilão das artes e o primeiro moralizador da história e pôs tudo abaixo, desconsiderando toda a criação instintiva dos tragediógrafos anteriores, e Eurípedes fortemente influenciado por Sócrates, o verdadeiro vilão da tragédia grega clássica e do modo de vida de sua época, vieram destruir toda a criação instintiva, dionisíaca, instituindo primeiramente o prólogo, e inserindo na tragédia a dialética socrática, o excesso de racionalismo. Marcando assim o fim da tragédia clássica grega e do mito.




Notas Bibliográficas

1 Centro metafórico, centro como lugar onde o deus se coloca. Cf. Brandão 2
2 O âmbar simboliza, destarte, o fio psíquico que religa a energia individual à energia cósmica, a alma individual à psique universal”. cf Brandão 2, pg. 63
3 Sobre os Hiperbóreos “Vive lá um povo santo que não conhece velhice nem doença, de quem dores e lutas ficam longe...”, Píndaro. In: cf Otto 3, pg. 53
4 cf Brandão 2, pg. 84
5 cf Brandão 2, pg. 94
6 cf Brandão 2, pg 95
7 cf Brandão 2, pg 96
8 cf Brandão 2, pg 94
9 cf Brandão 2, pgs. 84, 85 e 96
10 cf Otto 3, pg. 63
11 “De saída cobrir o rosto com pó de gesso ou com cinzas é um rito arcaico de iniciação? Os neófitos cobriam as faces com pó de gesso ou cinza para se assemelharem aos eídola, aos fantasmas, o que traduz a morte ritual”. cf Brandão 2, pg.118
12 “Jeanmaire lembra que a cocção, sobretudo num caldeirão, ou a passagem pelas chamas constitui uma operação mágica, um rito iniciático, que visam a conferir um rejuvenescimento; especialmente, em se tratando de criança, o rito tem por objetivo outorgar virtudes diversas, a começar pela imortalidade” (...) “Acentua Mircea Eliade que “os dois ritos” – desmembramento e cocção ou passagem pelo fogo – caracterizam as iniciações xamânicas. De fato, os Titãs comportam-se como Mestres de iniciação, no sentido de que matam o neófito, a fim de faze-lo “renascer” numa forma superior de existência.. cf Brandão 2, pg. 119
13 cf Brandão 2, pg 123
14 cf Brandão 2, pg 125
15 cf Brandão 2, pg. 125
16 cf Brandão 2, pg. 126
17 cf Brandão 2, pg. 130
18 cf Brandão 2, pg. 140
19 cf Fortuna 4, pg. 50
20 cf Fortuna 4, pg. 45
21 cf Fortuna 4, pg. 39
22 cf Fortuna 4, pg. 48
23 cf Fortuna 4, pg. 84
24 cf Fortuna 4, pg. 83
25 cf Fortuna 4, pg. 93
26 cf Junito 2, pg. 133
27 cf Junito 2, pg. 51
28 cf Junito 2, pg. 236
29 Cf Dias 5
30 Cf Dias 5, pg. 174
31 Cf Fortuna 4, pg. 220
32 cf Junito 2, pg. 243
33 cf Junito 2, pg. 249
34 cf. Nietzsche 1, Pg. 50
35 cf. Nietzsche 1, Pg. 152
36 cf. Nietzsche 1, Pg. 104
37 cf. Nietzsche 1, Pg. 98/9
38 cf. Machado 9, Pg. 230
39 cf. Nietzsche 1, Pg. 57
40 cf Barranechea 6
41 cf Silva 7
42 Cf Silva 7, pg. 48
43 cf Junito 2, pg. 161
44 cf Junito 2, pg. 162
45 “Os deuses olímpicos não foram criados como uma maneira de escapar do mundo em nome de um além-mundo, nem ditam um comportamento religioso baseado na ascese, na espiritualidade, no dever; são a expressão de uma religião da vida, inteiramente imanente, religião da beleza como floração – e não da falta -, que diviniza o que existe(...) Divinizar, neste contexto, significa fundamentalmente tornar bela, embelezar: a arte apolínea é a arte da beleza: se os deuses olímpicos não são necessariamente bons ou verdadeiros – como o deus das religiões morais -, eles são belos; para o grego beleza é medida, harmonia, ordem, proporção, delimitação mas também significa calma e liberdade com relação às emoções, isto é, serenidade, contra a dor, o sofrimento, a mote o grego diviniza o mundo criando a beleza. “Não existe belo natural” (NT, §3), o mundo grego da beleza é o mundo da “bela aparência”, a beleza é uma aparência”. cf Machado 8, pg. 18/9
46 “A beleza é uma aparência, um fenômeno, uma representação que tem por objetivo mascarar, encobrir, velar a verdade essencial do mundo”. cf Machado 8, pg. 19
47 cf Barranechea 6, pg.162
48 idem
49 “Importância que Nietzsche exprime em termos médicos afirmando que a arte possui um verdadeiro efeito terapêutico, é um eficaz ato de cura: a arte dionisíaca transforma um veneno – a poção mágica, o filtro das feiticeiras – em remédio, retirando de Dioniso suas “armas destruidoras”. cf Machado 8, 23
50 cf Nietzsche 1, pg. 30/1
51 “A desmesura se revela como verdade, no sentido de que à beleza da medida se opõe a verdade da desmesura ou de que à mentira da civilização se opõe a verdade da natureza” cf Machado 9, 214
52 cf Marlene 4, pg 164
53 “Através do principium individuationis se produz a necessidade dessa transfiguração artística, esse “desejo originário de aparência” é o que possibilita a muralha capaz de resistir à sabedoria do Sileno” cf Machado 8, pg. 20
54 cf. Nietzsche 1, Pg. 120
55 cf. Nietzsche 1, Pg. 95
56 cf. Nietzsche 1, Pg. 127
57 cf. Nietzsche 1, Pg. 87
58 cf Junito 2, pg. 241/2
59 cf. Nietzsche 1, Pg. 87
60 cf. Nietzsche 1, Pg. 80
61 cf. Nietzsche 1, Pg. 79
62 cf. Nietzsche 1, Pg. 78/9
63 cf. Nietzsche 1, Pg. 87
64 cf. Nietzsche 1, Pg. 105
65 cf. Nietzsche 1, Pg. 90







Referências Bibliográficas

1) NIETZSCHE, Friedrich. O Nascimento da Tragédia. Tradução de Jacó Guinsburg. Cia de Bolso, 2007
2) BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia Grega. Vozes, RJ
3) OTTO, Walter Friedrich. Os Deuses da Grécia. Odysseus, 2005
4) FORTUNA, Marlene. Dioniso e a comunicação na Hélade. Annablume, 2005
5) DIAS, Rosa Maria. “Um Dioniso Bárbaro e um Dioniso Civilizado no pensamento do jovem Nietzsche” In: Encontros Nietzsche, org. Vânia Dutra de Azevedo, Unijui,
6) BARRANECHEA, Miguel Angel de. “O aristocrata nietzschiano: para além da dicotomia civilização/barbárie” In: Nietzsche e Deleuze – Bárbaros e Civilizados, Org. Daniel Lins e Peter Pál Pelbart, Annablume, 2004
7) SILVA, Cíntia Vieira de. “Nietzsche, Freud e o problema da cultura” In: Cadernos Nietzsche nº 08, Discurso, 2000
8) MACHADO, Roberto. Nietzsche e a Verdade. Graal, 1999
9) MACHADO, Roberto. “Capítulo Seis: Nietzsche e a representação do Dionisíaco” In: O Nascimento do Trágico – de Schiller a Nietzsche, Jorge Zahar, RJ, 2006

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